quarta-feira, 22 de outubro de 2008

A mulher angolana após o final do conflito
Henda Ducados - 2004
Quatro décadas de um conflito violento infligiram danos pesados à população angolana e especialmente às mulheres. O diferente impacto do conflito e da pobreza em Angola sobre os dois sexos são evidentes nos indicadores inferiores de desenvolvimento humano das mulheres em comparação aos homens. Com a falta de segurança humana ainda uma realidade quotidiana, as mulheres e crianças constituem os grupos mais vulneráveis e, normalmente, a par dos idosos de ambos os sexos, constituem cerca de 80 por cento da população internamente deslocada. Após a guerra, as mulheres angolanas enfrentam novos desafios e lutam para vencer estes obstáculos e participar plenamente na sua sociedade. Contudo, parece que o governo não conseguiu até o momento responder às mudanças no papel da mulher angolana e às transformação de relações entre os sexos.
A participação das mulheres na guerra
A história recente das mulheres angolanas permanece amplamente desconhecida do discurso popular sobre a guerra. Os caminhos percorridos por mulheres no papel de soldados, líderes, activistas, sobreviventes e vítimas de uma das guerras mais trágicas do continente africano ainda têm de ser discutidos e suas implicações percebidas.
A Organização da Mulher Angolana (OMA), criada em 1962 como ala feminina do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), teve uma influência crucial no apoio às forças guerrilheiras dentro e fora de Angola. Os relatórios sobre as actividades da OMA mostram que seus membros contribuíam para a produção de alimentos para o exército guerrilheiro, organizavam campanhas de alfabetização e de cuidados básicos de saúde e transportavam armamentos e alimentos a grandes distâncias. Não há estimativas do número de mulheres que participavam do exército guerrilheiro da MPLA, mas os testemunhos orais indicam uma quantidade substancial.
A OMA encarava o envolvimento e participação da mulher na guerra da independência como sendo "um campo de prova em que todos os participantes eram exigidos a dar o máximo do seu esforço e desenvolver seus talentos e habilidades". Como em outras organizações femininas, a liderança da OMA incluía principalmente mulheres educadas com laços familiares fortes ou maritais com a liderança política do partido. Não obstante, a maioria dos membros eram mulheres comuns de todos antecedentes sociais e étnicos, que se envolveram no activismo político e no trabalho comunitário. Consequentemente, com a independência, a OMA ganhou apoio popular suficiente para contar com delegados em todas as províncias e estima-se um total de 1,8 milhão de membros registrados em 1983.
Por sua vez, a Liga Independente de Mulheres Angolanas (LIMA), a ala feminina da União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) foi fundada em 1973 e também desempenhou um papel importante na luta pela libertação. A versão corrente é que as mulheres que testemunharam o trabalho das alas femininas de outros movimentos africanos de libertação nacional instigaram a criação da LIMA. Em contraste com a OMA, as mulheres que ocupavam posições de liderança na LIMA não tinham laços de parentesco com a liderança da UNITA, devido ao temor de represálias sobre os maridos se as mulheres fracassassem nos seus esforços.
A actividade das mulheres na UNITA durante a luta pela libertação envolvia o transporte de materiais, alimentos e armamentos para os homens na linha de combate. As cargas eram transportadas na cabeça e as distâncias eram longas. Suas actividades políticas consistiam principalmente na mobilização de pessoas e especialmente na adesão dos jovens à luta armada. As mulheres também eram treinadas como activistas políticos. Durante a guerra civil após a independência, as mulheres continuaram em actividade em todas as frentes e a liderança da LIMA era notada em comícios políticos dentro e fora do país.
O legado da guerra
As mulheres sofreram as consequências directas da guerra de maneiras diversas. Além do grande número de mulheres que morreram em consequência de combates, também se reconhece que muitas foram violadas por combatentes de ambos os lados. Embora os soldados devessem proteger a população, muitos aproveitaram-se de sua posição para subjugar as mulheres. O seu comportamento e o impacto sobre as relações de poder entre os dois sexos talvez tenham solapado de forma durável a confiança da população feminina nesses soldados. Além disso, as mulheres sofreram em maior proporção com acidentes causado por minas, devido às suas responsabilidades pela colecta de alimentos. Muitas perderam seus maridos e filhos com a guerra, aumentado assim o número de mulheres encabeçando lares.
A guerra e seus impacto aumentaram o fardo de trabalho das mulheres, já que elas assumiram uma responsabilidade maior pelas actividades desenvolvidas normalmente pelos homens, como a provisão do lar, disciplinar os filhos, construção e reparação de casas, contacto com os líderes comunitários e funcionários governamentais, e cumprimento das obrigações sociais e religiosas. Muitas continuam a desempenhar estas tarefas mesmo em tempo de paz, mormente porque os maridos morreram ou abandonaram o lar. Os rendimentos das mulheres no sector informal da economia começaram causar um sério conflito cultural pondo em causa a capacidades dos homens de ganhar rendimentos e o papel tradicional dos dois sexos na família. Estas mudanças explicam parcialmente a evidência crescente de uma explosão de violência doméstica contra mulheres e crianças desde os inícios dos anos 90.
No que concerne ao lar, os longos anos de conflito criaram situações que dificultam a decisão das mulheres se casarem ou voltarem a casar-se, especialmente se tiverem sofrido abuso sexual. A escassez de homens disponíveis para o casamento também significa que o casamento está associado à aceitação da poligamia, que continua a ser prática comum e socialmente aceitável em Angola. Quando os homens tinham de combater durante alguns anos numa região diferente, a formação de lares secundários era considerada como legítima.
A interacção de milhares de soldados nas regiões da linha de frente com uma população indigente também teve um tremendo impacto de longo prazo nas relações entre os dois sexos. Por exemplo, as raparigas que se prostituíram para sobreviver durante o conflito podem sofrer de graves problemas de saúde, baixa auto-estima ou exclusão social se engravidaram e/ou contraíram doenças sexualmente transmissíveis como HIV/SIDA.
Na sequência do Memorando de Luena, o governo acordou um vasto programa de desmobilização, desarmamento e reintegração. Entretanto, contrariamente à recomendação do Banco Mundial e de outras instituições, as combatentes femininas foram excluídas do recebimento de qualquer benefício directo, já que o programa cobria somente um número pré-definido de soldados da UNITA e das Forças Armadas Angolanas (FAA) e não estabeleceu provisões específicas para grupos vulneráveis como viúvas e esposas da UNITA.
As mulheres que foram sequestradas pela UNITA enfrentaram o dilema de deixar ou não os seus maridos da UNITA e voltar aos seus lares originais, onde corriam o risco de serem rejeitadas. Além disto, a integração dos partidários da UNITA é difícil para homens e mulheres, as relações com os não-partidários da UNITA continuam a ser difíceis, com grandes desconfiadas de parte a parte, e alguns relutantes em dar emprego a partidários da UNITA.
Por outro lado, há indícios de que as mulheres da UNITA, que se embrenharam nas matas durante os anos da guerrilha, sentem agora dificuldade em se relacionar com os homens. As mulheres de áreas urbanas afirmam apreciar poderem expressar agora mais abertamente os seus sentimentos, mas não estão habituadas em fazê-lo; os longos anos vividos sob um regime de repressão tornaram-nas relutantes em mostrar seus sentimentos publicamente.
Participação na vida política e envolvimento das mulheres nas iniciativas de paz
Como em tantas outras situações de conflito, as mulheres angolanas foram excluídas de uma participação significativa nas negociações formais de paz entre as partes em guerra. Nem a OMA, nem a LIMA foram capazes de ter um papel efectivo na promoção do fim da guerra.
A participação mais rumorosa das mulheres na vida política consistiu na promoção de direitos da mulher. Tanto durante como desde o fim da guerra, as mulheres negociaram constantemente com a liderança política, pressionando para que suas preocupações fossem levadas a sério por políticos e funcionários governamentais. No passado, a OMA teve influência decisiva não somente como organização de massa, mas também como uma organização voltada para políticas dedicadas à luta pela melhoria da situação legal das mulheres, bem como para seu fortalecimento económico, e acima de tudo, para a incorporação de questões das mulheres nas principais políticas.
Possivelmente, as realizações mais significativas da OMA ocorreram na década de 1980. Seus esforços resultaram na introdução do Código de Família e na formulação e implementação de uma política que proporcionasse o livre planeamento familiar para as mulheres. Os pontos principais do Código de Família são o reconhecimento de uniões consensuais a par do casamento, a protecção de filhos nascidos fora do casamento e o incentivo a uma divisão justa de tarefas e responsabilidades de família. A OMA também forneceu assistência técnica às mulheres e promoveu o debate e discussão de assuntos anteriormente considerados tabus, como o casamento habitual e o aborto.
E embora a OMA tenha influenciado efectivamente a promoção destas reformas, a realidade é que a maioria das mulheres ainda está lutando para que os seus direitos sejam respeitados na prática. E ainda que a OMA continue a ser até hoje um referencial importante do movimento feminino em Angola, já não é o grupo que lidera a representação da agenda da promoção dos direitos das mulheres. O número de membros entrou em declínio e os laços continuados da organização com o Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA) contribuíram para solapar sua credibilidade pública e capacidade de atrair fundos da comunidade internacional. Alguns membros decidiram criar as suas próprias ONGs como forma de agir independentemente do partido e têm sido mais activas e engenhosas em responder às necessidades das mulheres, através da instigação de programas e campanhas de desenvolvimento sobre questões como direitos de reprodução e vacinação infantil.
É importante observar que algumas organizações femininas têm se destacado nos esforços de construção de paz. Por exemplo, a Rede Mulher tem advogado pela paz e realizado uma campanha contra a violência sobre as mulheres, e Mulheres, Paz e Desenvolvimento (MPD) tem sido também actuante na construção da paz. Estas acções contribuíram para formação da plataforma feminina da paz e, o que é mais importante, revelaram que é possível para as mulheres de partidos políticos e sectores sociais diferentes juntarem esforços visando o mesmo objectivo.
Todavia, o movimento feminino é, em geral, fraco. Como outros movimentos sociais em Angola, o movimento feminino carece de capacidade de acção e de coordenação. Muitas ONGs femininas não focalizam seu papel e objectivos, reflectindo uma fraqueza geral da sociedade civil angolana, e o resultado é que têm tido pouca influência nas políticas que poderiam melhorar a vida das mulheres. O movimento também tem sido criticado por seu fracasso em representar os interesses de mulheres do povo. A liderança fica muitas vezes nas mãos de mulheres privilegiadas que têm agendas próprias devido às suas fortes ligações com partidos políticos.
Uma das razões porque o movimento feminino fracassou em formar uma plataforma comum tem origem no facto de que a guerra não teve o mesmo significado para todas as mulheres. As mulheres usaram uma variedade de maneiras para sobreviver. E a realidade social das mulheres pobres, seja em áreas rurais ou urbanas, difere grandemente da realidade de mulheres mais privilegiadas. Um número maior de mulheres pobres perdeu seus maridos e filhos na guerra, ou foram deslocadas para campos de refugiados. Para essas mulheres resta pouca esperança de melhoria imediata de suas condições de vida, considerando o seu baixo nível de educação e o facto de que, politicamente, pouco se faz para lidar com as suas necessidades especiais.
Além disto, as organizações femininas padecem das mesmas restrições que outras organizações cívicas no que concerne a actividades financeiras e empresariais independentemente do governo. O sector não governamental está ainda emergindo e as ONGs não têm experiência ou capacidade para responder às enormes necessidades de muitas comunidades. A maioria das iniciativas cívicas é impulsionada por doadores ao invés de comunidades, que até o momento tendem a implementar actividades humanitárias de curto prazo em detrimento de actividades de desenvolvimento de longo prazo. Neste contexto, os grupos locais necessitam de ajuda significativa para começar a implementar actividades sustentáveis de longo prazo. Até agora, o fornecimento desta assistência tem sido deixado, na sua maioria, a cargo de organizações internacionais, contribuindo desta maneira para a grande disparidade entre as capacidades dos agentes locais e internacionais.
Desafios actuais
Hoje em dia, as políticas sociais de Angola continuam a ser dirigidas em grande medida para o sexo masculino. A despeito do reconhecimento dos direitos femininos estabelecidos pela constituição, estes são raramente respeitados na prática, conforme demonstrado em questões como o apoio a crianças, em que o governo não dispõe de mecanismos para assegurar que os homens cumpram com o seu dever paternal. O direito a herança é também uma área em que as mulheres continuam sem avançar, embora este assunto seja mais complexo devido às práticas tradicionais que colocam as viúvas em posição vulnerável depois da morte de seus companheiros.
O maior obstáculo à realização das provisões constitucionais é que a sociedade angolana continua sendo predominantemente uma 'reserva masculina' onde os direitos da mulher são frequentemente violados para a preservação da estrutura patriarcal herdada dos 'valores tradicionais' africanos.
Embora mais elevado do que em qualquer outra parte do continente, o número de mulheres em posições de poder e influência permanece claramente inadequado. Embora 54 por cento da população seja formada por mulheres, elas estão sub-representadas em todos os órgãos decisórios. Apenas 34 de um total de 183 parlamentares e 3 de um total de 27 ministros do governo são mulheres, e existem somente duas embaixadoras, três consulesas gerais, e três ministras adjuntas. A participação das mulheres nos governos locais também é limitada. Este facto pode ser explicado por muitos factores, incluindo sua ausência comparativa da hierarquia dos partidos políticos e as restrições de tempo que as impedem de competir em pé de igualdade na esfera política.
As mulheres envolvidas na tomada de decisões nacionais estão separadas da maioria das mulheres comuns pelo estilo de vida, classe e objectivos. E embora muitas mulheres angolanas considerem a criação do Ministério da Família e Promoção da Mulher um avanço real na batalha pelo espaço político, também se pode entendê-la como tendo ajudado a separar as questões da mulher do resto da agenda política do governo. Muitos argumentariam que a liderança do governo não leva o ministério a sério, alotando-lhe um dos orçamentos mais baixos com a consequência imediata de carência de pessoal e uma capacidade de actuação limitada.
Os meios de comunicação angolanos também têm influência, reforçando imagens sexuais estereotipadas de masculinidade, e proporcionando muitas vezes apoio racionalizado para a perpetuação de violência contra as mulheres. As mulheres são exploradas através de imagens do corpo feminino. Isto pode ser constatado pelos eventos altamente divulgados em torno da eleição de Miss Angola, apoiados pela Primeira Dama e grandemente apreciados por muitos governadores provinciais, que em alguns casos subsidiam o espectáculo com vultosas somas de dinheiro público.
Conclusão
A despeito da capacidade de liderança mostrada por muitas mulheres ao se adaptarem a novas actividades durante a guerra, a igualdade plena entre os dois sexos em Angola continua muito distante. Sob certos aspectos, é até desalentador falar em política de igualdade entre os sexos num contexto em que as disparidades sociais e económicas são as únicas referências deixadas para as novas gerações.
Entretanto, há algumas providências que podem ser adoptadas desde já. Primeiramente, há a necessidade de fazer maiores esforços para analisar e compreender o impacto nos dois sexos da guerra e do seu legado em Angola. Com isto se construiria uma base para o desenvolvimento de políticas sensíveis à situação dos dois sexos, e que poderia facilitar uma participação maior das mulheres em todas as esferas da sociedade. Por sua vez, tal contribuiria para reajustar as relações entre os dois sexos mais de acordo com as necessidades quer de mulheres quer de homens como uma componente fundamental de um processo de longo prazo de desenvolvimento pacífico e sustentável.

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