quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Sociedade da Angola pede ajuda.

A Sede e a Fome
A Sede e a FomeA sede e a fome caminham muitas vezes de mãos dadas, naficção e na vida. Na mitologia, Tântalo foi castigado por Júpitera sofrer fome e sede, e são obras de misericórdia temporais darde comer a quem tem fome e de beber a quem tem sede.No entanto, a fome e a sede diferem em variadíssimos aspectos.A fome é uma dor surda ou aguda, localizada na região superiordo ventre e acompanhada por um furioso desejo de comer.A sede é uma angustiosa necessidade de ingestão de líquidos,acompanhada por secura da mucosa da boca.Se a fome se prolonga, as alterações metabólicas resultantesmitigam e podem até anular as queixas, desaparecendo osofrimento.91SedePorém, com a sede isso não acontece. À medida que o tempocorre, tudo se agrava: a boca seca, a língua greta e cola-se aocéu-da-boca, a voz altera-se e a ânsia de beber passa a um estádiopróximo da loucura, a um tormento insuportável. De aí queo vocábulo «sede» seja em muitos idiomas empregue para expressartodo o desejo imoderado.Talvez por isso, são frequentes as greves da fome, que porvezes duram semanas. Mas, por mais legítima e justa que sejaa causa pela qual se luta e por maior que seja a fé ou o ânimode quem reivindica, será difícil alguém conseguir prolongar umagreve da sede além de escassos dias.A fome e a sede têm mecanismos diferentes. Segundo os tratadosde Fisiologia, a fome é devida à baixa de açúcar e outras substânciasno sangue e às contracções do estômago vazio.Relativamente à sede, segundo os mesmos tratados, duasteorias explicam o seu mecanismo. Uma, geral, defende que asede provém de alterações das taxas de água e sais no sanguee células do sistema nervoso; outra, local, apoiando-se no factode a sede desaparecer quando a mucosa da boca é humedecida,defende que a sede provém da secura da boca.Os factos que se seguem, passados comigo no Norte de Angolano ano de 1962, parecem provar a existência de um terceiromecanismo para a sede.Da primeira vez que partimos para uma operação que durariavários dias no mato, distribuí a todos os elementos da com-92panhia água filtrada e uns comprimidos denominados «Toni--Hidratante», que continham sais minerais. Destinavam-se a compensaras perdas de água pela respiração e de água e sais pelosuor, devidas ao esforço prolongado sob altas temperaturas.Ensinei como a água devia ser tomada, e o intervalo com quecada comprimido devia ser ingerido, e deixei bem expresso quecastigaria todos os que bebessem água dos rios.Fui, em seguida, preparar o meu próprio cantil. Veio-me àlembrança a teoria de Claude Bernard, que chama mecanismosvitais aos que mantêm a constância do meio interior, teoria queHaldane considerou a mais importante de todas as formuladaspor fisiologistas, e, ao mesmo tempo, o conceito de homeostasede Cannon. Nessa base, entendi que o mais lógico seria começarpela homeostase já no meio exterior, ou seja, dissolvendodesde logo os comprimidos na água que me destinava.Orgulhoso com este raciocínio, passei da teoria à prática,mas só em mim próprio, e o resultado foi que durante dois diasbebi uma água não tão salgada como a do mar, mas tão fortementesalobra que não dessedentava, antes pelo contrário, intensificavamais e mais a sede.Tinha tomado as mesmas doses de água e de sais que os meuscamaradas. Eles estavam em boa forma, eu sofria os horrores dasede. Curiosamente, não tinha a boca seca. Sentia apenas umaimperiosa necessidade de beber, que mais se agravava de cadavez que levava à boca o meu cantil e bebia da minha água salobra.93Na tarde do segundo dia parámos no alto de um morro paradescansar da subida. A sede tornara-se para mim uma terrívelagonia. Confesso que cheguei a admitir beber urina ou própriaou de alguém que urinasse, mas, talvez pelas grandes perdaspelo suor, ninguém urinou.Numa espécie de delírio, surgia-me na cabeça repetidamenteo episódio de As Minas de Salomão em que os heróis, ao atravessaremo deserto, encontram «um enorme meloal bravo, commilhares de melões a cair de maduros» e neles matavam a sedeque os atormentava.Deitei-me de lado no chão, procurando algum alívio nosono. Meio inconsciente, pareceu-me sentir uma vibração distante,como a de água a correr. Havia um rio perto! Levantei--me e, sem informar ninguém das minhas intenções, segui pelapicada que descia ao longo da vertente oposta do morro, indiferenteà possibilidade de algum encontro ou com os leões cujosrugidos ouvíamos durante a noite ou com algum dos bandos deguerrilheiros em cujo encalço andávamos. E não teria percorridoduzentos metros quando, olhando por cima do capim, avisteiuma coluna de africanos que avançava na minha direcção.Internei-me no capim, onde me mantive acocorado e imóvel apensar no que havia de fazer. Quando passaram junto a mim,vi, entre os africanos, alguém vestido com um camuflado dasnossas tropas e, logo, reconheci o alferes Vasconcelos, de umaoutra companhia. A situação continuava a ser crítica, pois se94suspeitassem de alguma presença no capim, o mais certo eralevar com uma rajada ou uma granada. Por isso, simultaneamente,gritei o nome do alferes e pus-me em pé, de um salto.Pararam. Avancei e disse-lhe ao que ia. Entretanto, aproximou--se um sargento que vinha na retaguarda do grupo. Olhou paramim e deve ter percebido.– Beba à vontade – disse, oferecendo-me o seu cantil. – Acabeide o encher ali em baixo no rio.Esquecido das severas ordens que dera, levei o cantil à bocae bebi longa e regaladamente. Ao fim de alguns goles, tive avisão da água barrenta dos rios de Angola e das suas banhistas:larvas ciliadas, espiraladas, helicoidais que num bailado constantesobem e descem; e depois surgiram, curiosamente em itálicotal como nos tratados, os nomes Strongyloides stercoralis,Balantidium coli, Schistosoma mansoni – mas fechei os olhos evarri a visão para fora da cabeça.Recuperada a calma e a lucidez regressei morro acima.Caminhando lentamente e a gozar o meu bem-estar, encontreiuma terceira teoria para o mecanismo da sede. Sem que hajauma carência orgânica, a sede pode ser causada pela ausênciado prazer da ingestão de qualquer líquido potável e, mais ainda,se a essa ausência se associar a sensação desagradável de umlíquido salobro e morno. Eu sofrera essas duas agressões.Por tudo isso, sustento a hipótese, pois dela tenho provasvividas, dolorosas, inesquecíveis, insofismáveis.


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